É-me quase impossível dizer 'hoje', embora se diga e deva-se mesmo dizer diariamente 'hoje'. Mas quando pessoas me comunicam o que pretendem fazer hoje - pra não falar no amanhã - não adquiro, como se pensa com frequência, um olhar ausente, e sim muito atento, por constrangimento, tão desalentadora é minha relação com o 'hoje', pois esse 'hoje' só posso passar numa angústia imensa e com uma pressa extrema, e dele escrever, ou apenas dizer, nessa angústia imensa, o que sucede, pois seria preciso destruir imediatamente o que se escreve sobre 'hoje' da mesma forma como as cartas verdadeiras são rasgadas, amassadas, não concluídas, não enviadas, porque são de hoje e porque não chegarão em um hoje. Quem um dia escreveu uma carta terrivelmente suplicante, para depois rasgá-la e reprová-la, é quem está mais perto de entender o que 'hoje' significa. Pois 'hoje' é uma palavra que só suicidas deveriam empregar: para todos os outros, ela simplesmente não tem sentido: para eles, 'hoje' é a mera designação para um dia qualquer, exatamente para o dia de hoje.

em MALINA, de Ingeborg Bachmann

PRÓLOGO
Uma peça de teatro - O pequeno Eyolf - apresenta um drama de família: um pai e uma mãe discutem, observados por um filho deficiente. Ambientada em um cenário simples de papelão e tecido, a peça é interrompida furiosamente por uma mulher. Ela invade o palco com agressividade, empurrando os atores e jogando tudo o que vê à frente pelo chão. Por fim, a invasora se vê cara a cara com o menino manco de muletas (ou melhor, com o ator que o interpreta). Este se levanta de sua cadeira, tira uma arma do bolso e lhe desfere um tiro. Ela cai morta no chão.
OFF: (ruído de conversa ao fundo) Este roteiro está muito subjetividade feminina, ele precisa ficar um pouco mais político, não acha?
SEQUÊNCIA 1
Cena 01 - INT - DIA
Duas pedras em cima de uma mesa de canto.

Cena 02 - INT - DIA
Um casal está deitado na cama. Vemos somente uma parte do casal - a MULHER (a mesma que invadiu a peça de teatro no prólogo). O HOMEM está fora de quadro, só vemos um pedaço de seu braço e ouvimos a sua voz (seu murmúrio). Ela olha para as pedras fora de quadro.

Cena 03 - INT - DIA
Plano detalhe: o braço do HOMEM se move, a abraça levemente.

Cena 04 - INT - DIA
Plano mais aberto do quarto, a cama, a janela. Sobre o leito, a mulher repousa ao lado do corpo do homem, do qual só vemos uma parte.

Cena 05 - INT - DIA
O mesmo plano anterior, com outra luz (desta vez mais baixa). Plano mais aberto do quarto, a cama, a janela. Sobre o leito, no lugar da mulher, há um corpo de pedras ao lado do corpo do homem.

OFF - voz da mulher

Imagine só se amanhã, ao acordar, você me desse um beijo e partisse. E eu, uma mulher banal, morresse assim que você cruzasse a porta. Uma morte morrida, uma morte justa. Seria o nosso último beijo e a gente nem ia se dar conta.

Do instante de minha morte, você só saberia ao chegar, no fim do dia. Encontraria meu corpo frio, a cama no mesmo lugar. Meus cabelos ainda embaraçados, ruídos nos meus olhos. O corpo, inerte.
FIM
SEQUÊNCIA 2
Cena 01 - INT - DIA

A mulher toma café, digita no celular e se troca ao mesmo tempo. Em determinado momento, olha para algo fora de quadro, com o olhar hipnotizado. Vemos alguns objetos infantis ao seu redor. Uma criança em sua ausência.

Cena 02 - INT - DIA
Uma roupa repousa em um prego, uma camisa branca. O plano é alto. Ela se aproxima lentamente, enfia os braços por baixo e faz algumas formas na camisa. A roupa se solta, agora ajustada ao corpo, e ela sai de plano.
SEQUÊNCIA 3
A MULHER andando de máscara, rente a um muro cheio de cartazes de manifestação e greve geral rasgados, sobrepostos, em direção a uma esquina barulhenta, um som de fogo crescente. Ela pára na esquina, uma luz de fogo bafeja sua pele, uma fumaça volta e meia entrando em quadro. Tira um cigarro da bolsa. Conversa sobre o ocorrido na esquina com alguém fora de quadro.
ELA
De onde veio esse fogo, da esquerda ou da direita?



ALGUÉM
O fogo vem sempre de baixo, das profundezas da terra,
ou de cima, do sol.
Alguém estende o isqueiro aceso vindo da esquerda, na direção do cigarro dela.
SEQUÊNCIA 4
Cena 01 - INT - DIA
Um juiz de costas para a câmera, abrindo uma sessão de um tribunal de pequenas causas.








Cena 02 - INT - DIA
A mulher de frente, ao fundo, desfocada. Uma outra mulher, de costas, em primeiro plano. Mudança de foco.

Cena 03 - INT - DIA
Contraplano, a outra mulher de frente, focada, a dona da loja roubada. Voz do juiz fora de quadro.






Cena 04 - INT - DIA
Plano detalhe, fundo de mesa de madeira. Uma mão entra no quadro e deixa uma marionete em cima da mesa. Vemos a expressão do boneco.
JUIZ
Angela M, denunciante. Alega ter visto a senhorita H. roubando um boneco de marionete na loja de sua propriedade, no dia 05 de outubro, às 11hs e 35 minutos. A denunciada se recusou a devolvê-lo, sendo detida pelo segurança do estabelecimento ao tentar fugir.
JUIZ
Luisa H., nascida em 18 de maio de 1984, desempregada, sem domicílio, solteira, sem antecedentes criminais, apresenta-se ao tribunal de pequenas causas por suspeita de crime contra o patrimônio, ao furtar um objeto da Loja Rei dos Brinquedos no dia 05 de outubro de 2020, às 11hs e 35 minutos. Um crime ao qual constitui crime punível segundo os artigos 155 e 157 do Código Penal, Lei 13.654 de dezembro de 2017.
SEQUÊNCIA 5
Cena 01 - INT - DIA

A MULHER desce as escadas de uma casa cheia de plantas, a vemos através de um vidro. Somente sua silhueta aproxima da câmera, mas ainda em distância. Uma aparência fantasmática.

Cena 02 - INT - DIA

A MULHER finalmente adentra pela porta. Caminha até um sofá, colchão ou cama e deita-se, como se ouvisse algo no colchão. Fecha os olhos.

Cena 03 - INT - DIA

Sequência extra-diegética de fábula infantil feita de desenhos de criança narrada por ela.

Cena 04 - INT - DIA

Mesmo plano da cena 02, vemos uma luz se alterar, uma sombra se projetar, como se alguém chegasse na casa. Ela acorda.

SEQUÊNCIA 6
Cena 01 - INT - DIA
Através do reflexo de uma janela vemos a MULHER abrir uma pequena maleta de pertences. Nele começa a colocar objetos pessoais: primeiro cosméticos, necessaire, livros, echarpe, documentos, algumas fotografias, um carregador de celular, uma sacolinha de calcinhas, um pano sujo de terra, um amontoado de cabelos, um saco transparente cheio de líquido branco, pequenos ossos, pedras, um peixe dentro de um saco plástico. Ela fecha a maleta e um movimento da câmera agora descobre o seu rosto refletido no vidro da janela. O vidro se torna embaçado pelo calor de seu corpo.
SEQUÊNCIA 7
A MULHER e uma amiga estão sentadas em um sofá no ateliê. Alguns objetos estão espalhados ao redor: há muitos objetos em cima da mesa, restos de comida, uma garrafa de bebida por terminar. As duas se vestem de forma parecida.
ramificação para as imagens do fantasma
SEQUÊNCIA 8
Uma refeição é compartilhada em uma mesa de família. A mesa de jantar está localizada na cozinha, um cômodo pequeno e apertado. Vemos a comida posta à mesa, a refeição já iniciada. Há quatro pessoas na mesa. Um pequeno silêncio antecede a primeira fala.
PAI
Um sujeito bem-educado que comete um crime torna-se cem vezes mais criminoso do que um criminoso vulgar. O sujeito que não teve acesso a educação tem pelo menos essa desculpa, o objetivo natural da vida dele é cometer atos de violência.

MÃE
Uma discussão no meio da rua é, em muitos aspectos, detestável. Mas as energias empenhadas nisso são boas no final das contas.

PAI
Os grandes humanos têm esta obrigação: cumprir os deveres com benevolência e ter flexibilidade nos seus julgamentos e nas suas ações.

MÃE
Muitos cometem o mesmo crime com resultados muito diferentes. Um carrega uma cruz por seu crime; outro uma coroa. Uns são tratados como benfeitores da humanidade, outros são jogados nas masmorras. Um crime que persevera pelos séculos deixa de ser um crime e se torna uma virtude. É a lei dos costumes - e o costume, cedo ou tarde, substitui todas as outras formas de lei.




PAI
Por que você ri desse jeito? Não vejo graça nenhuma.

MÃE
Por que não? Quando criança, eu achava que ia ser uma grande pessoa, uma pessoa admirável. A graça está em pensar que um dia eu pensei que eu seria grande,ah, deixa pra lá.

PAI
Por que não quer ser aquilo que você é?

MÃE
A pessoa é a ideia que ela faz de si mesma. Se a pessoa pensa que é amável, ela se torna amável, se ela pensa que é bela, torna-se bela, talentosa, generosa e assim por diante.
O PAI observa a mesa com um sorriso sardônico. A MULHER o encara sem compaixão. De baixo da mesa, a criança amarra os cadarços do tênis da mulher um no outro. A mulher se levanta, quebra o prato, se desequilibra e cai sentada de novo.

Ao fundo, vemos as mãos de uma CRIANÇA brincando com a comida.
SEQUÊNCIA 9
Cena 01 - CASA - INT - NOITE
Plano detalhe de um machucado, na perna ou na mão da MULHER. Vemos a mão do HOMEM ajudar a fazer um curativo no machucado da mulher. Plano detalhe do machucado como o curativo, vemos apenas um indício de sangue.
SEQUÊNCIA 10
SEQUÊNCIA 11
A MULHER anda pela rua com os sapatos amarrados um no outro. Ela caminha cada vez mais depressa até cair. Levanta-se e retoma o movimento. Cai mais à frente novamente e se machuca. Levanta-se e retoma a sua marcha, tropegamente.
A MULHER de costas, andando em um longo viaduto. Não vemos seus pés, apenas seus cabelos, e uma bolsa atravessada. Ela caminha até chegar a uma escada. Ela desce a escada e a câmera a deixa ir, não acompanha.
ramificação para as imagens do fantasma
ref: opening millenium mambo
outras imagens de referência
ref: le révélateur | philipphe garrel
valie export : facing a family
parede branca e escuro / madeira
desfoque - mão de isqueiro no foco
crescer textos para a plateia
trechos de O Pequeno Eyolf
MULHER
Olhe como este colete me cai mal. Estou parecendo uma gazela! (E ri.)

SENHORA
Uma gazela eu não diria, uma hiena talvez?

MULHER
Uma hiena, as hienas, riem sorrateiramente, de tanto medo que tem. Elas são cheias de medo, na verdade, e atacam!
(Imitando uma hiena) Atacam até os lobos selvagens quando se sentem ameaçadas.

SENHORA
Auuuuuuu! (uivando como lobo)

MULHER (trocando de roupa)
Eu preferia ser um guepardo, o lobo-tigre, livre, aventureiro.
Uarrrr! (imitando um guepardo)

SENHORA
Elas, na verdade, são desaventurados, os guepardos. Deixam as lágrimas correrem mirando o norte, prejudicando o transbordar dos
rios. São avarentos e egoístas, violam as leis do Universo, são ferozes e convidam à ruína.

MULHER
Preferia ser um cavalo, belo, formoso, que passa a vida toda a carregar e a servir, perto dos homens e das mulheres? Tipo o sujeito
que diz: “Já que decidiu me matar, me deixe rezar antes de morrer”.

SENHORA
Melhor do que ser uma vaca, ou pior, uma cabra, um bicho doméstico que não sabe de sua capacidade. Acha que pode resistir e percorrer
milhas, veredas, sendo que na realidade passa anos rodeando círculos, feliz da vida, acreditando estar indo pra algum lugar.

MULHER
Mas elas são adaptáveis, que lindas, e são amáveis! Possuem chifres (imitando com as mãos). Como são bobas, como são bobas as cabras!

SENHORA
Vá, pequena cabrita. Preciso me resolver. A senhora adentra o mictório. A mulher fica parada, em frente ao espelho, imitando toda sorte de animais.
SEQUÊNCIA 4B
Dentro de um banheiro pequeno e apertado, no Tribunal de Pequenas Causas, a MULHER faz xixi. Ela se levanta para vestir a calcinha, depois a meia-calça e por fim, sua pequena saia. Ao sair para o lavabo coletivo, encontra uma SENHORA, que traz consigo várias roupas distribuídas em uma mochila e um carrinho de feira de lona. Elas se entreolham. A MULHER retira de sua sacola um colete de estampa animal de numeração muito maior do que a sua e o veste em frente ao espelho.

SEQUÊNCIAS EXTRAS
plano sequência - o teatro é invadido e a mulher morre sem vermos a arma. (e depois close na arma)
conflito de gestualidades entre mulher x atores
esta sequência será toda filmada de câmera a pino (plongée) em plano sequência. vemos apenas os braços, gestos e a cabeça dos atores
Plano fechado no rosto da mulher, detalhes de suas expressões.
A mãe ri sarcasticamente. A criança brinca com seus talheres, espalhando comida ao redor do prato, na mesa. Ela parece feliz e excitada. Ela olha para a boca da avó (doce) e para a do avô (amarga). Ela olha para os olhos da mãe (ausentes).